9 de maio de 2004

Che e os Diários de Motocicleta
O que dizer de Diários de Motocicleta, de Walter Salles? Ninguém duvida do gigantesco talento do nosso cineasta mais internacional, do qual ele já deu mostras em mais de um longa. Mas, por que, a esta altura do campeonato, reviver a figura de Che Guevara? A resposta mais simples que consigo imaginar é: ele é um ótimo personagem. Antes de continuar a leitura, já aviso que não simpatizo nem um pouco com Che ou as idéias que ele defendeu, muito menos com as suas ações. Dito isto, prossigamos.
A armadilha que Walter (os jornalistas costumam chamá-lo de Waltinho... detesto apelidos, especialmente aqueles que me dão uma falsa intimidade com alguém que mal conheço) evita, com inteligência e elegância, é tentar explicitar o momento em que surge Che, o revolucionário, a partir de sua viagem pela América Latina. Até porque ele não tem esta resposta. Entretanto, esta armadilha esconde outra, bem mais espinhosa. Porque quando Che emerge, ele acaba por abandonar aquele povo que descobriu na travessia, colocando a ideologia acima deles, comandando assassinatos e liderando pessoalmente o massacre dos "inimigos políticos" no famoso e mitológico parédon. Mesmo a beleza do filme, o apuro estético de Walter não serão capazes de desfazer este nó.
A intenção explícita do roteirista e diretor é a de humanizar o mito, devolvê-lo ao convívio diário, torná-lo palpável - portanto, a escolha da viagem de Che e Granado não poderia ser mais óbvia. Tentando se distanciar da ideologia, o filme deseja ser para a América Latina o que Central do Brasil foi para o nosso país, ou melhor, para o público brasileiro: um convite visual a descobrir uma terra distante da maioria de nós. Diários de Motocicleta demonstra a ambuigüidade de nossa terra, uma ilha de descendência portuguesa cercada por um conjunto de países de línguas e tradições tão diferentes que é como se estivéssemos visitando outro planeta. Exceto nos nossos problemas, misérias e na capacidade algo “messiânica” de se acreditar em homens como Che. Infelizmente, é impossível demover Che de sua condição de mito; sua imagem já foi diluída até pela cultura pop, com a foto de Alberto Koda estampada em camisetas e bonés de qualquer rebeldezinho de cara espinhuda ao redor do mundo. Também infelizmente, este mito reacende a crença em outro, ainda mais complexo e, digamos, perigoso: o da revolução como resposta aos gigantescos problemas das sociedades. A curto, médio ou longo prazo, toda revolução vem cobrar seu preço, porque demonstra ser apenas um instrumento de tomada do poder por um grupinho de sujeitos travestidos de representantes das massas. Não foi diferente com Che, que se deixou apaixonar não mais pela humanidade, mas pela idéia da revolução em si mesma. Vira burocrata em Cuba, comanda execuções, escreve um cruel livro-guia para guerrilheiros, vai a África “fomentar mil Vietnãs”, volta a América do Sul, derrotado, e acaba preso e executado.
Sem dúvida um personagem rico, mas certamente não o “homem mais completo do século XX”, como o definira, fazendo o papel de baba-ovo filosófico, Jean-Paul Sartre.
Aliás, se serve de contraponto, vale a leitura de O Homem Revoltado, de Albert Camus. Até a publicação deste livro, ele e Sartre eram amigos, mas diante do silêncio e apoio de Sartre às atrocidades stalinistas, Camus mete o dedão na ferida e tornam-se inimigos ferrenhos.
Mas não se deixe enganar nem pela ideologia ou por este post: assista a Diários de Motocicleta e redescubra uma América Latina que nosso isolamento condenou a distância. E pense muito bem antes de assinar embaixo de qualquer um que diz saber como conduzir os povos a “libertação”. Isto vale para Che também.

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