24 de novembro de 2004

Não ao Amor
Os três estavam reunidos para uma decisão importante, vital para a imagem da recém-nascida república. Era um verão especialmente quente e todos transpiravam córregos debaixo de fraques negros, cartolas pretas e outras firulas indispensáveis aos homens de bem desta terra, sentados ao redor de uma mesa na frente de uma respeitável casa de respeitáveis bebidas à beira-mar. Observaram a bela dama que passava no calçadão de pedra, os olhos baixos, a cabeça alta, ligeiramente esnobe e delicada, deixando intencionalmente a mostra dois centímetros de pescoço que deveria ser, imaginaram, um jardim de delícias nada sagradas. Apesar dela, eles retomam logo a discussão:
- Ora, o que me dizes? – pergunta o primeiro.
- Somos positivistas, homem. – responde o segundo.
- E este país há de se tornar, à luz da mais moderna filosofia positivista, a estrela do século XX – afirma, categórico, o terceiro. E daqui para frente, leia-se o diálogo assim, porque há que se ter paciência do escritor forçado a explicitar quem diz o quê: o primeiro, o segundo e o terceiro.
- Mas, amigos, "amor"? Justo "amor"?
- O que tens contra, homem?
- Lembra-te: Nossa vida no teu seio, mais amores.
- Certo, mas, não sei como me expressar. Não me agrada a composição. – e olha de novo o papel rabiscado na mesa. Um quadrado, um losango achatado, uma bola e um faixa no meio. Desconsideremos a falta de habilidade com as tintas e os pincéis, eis um esboço de bandeira.
- Sim, "O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim"!
- O lema dos positivistas. E viva Comte!
- "Amor" ficou baranga.
Silêncio.
- Baranga?
- Do que falas, homem?
- Baranga, bobo, besta, vulgar, kitsch, brega. São estas as palavras que nossos herdeiros usarão para falar de nossa flâmula se os senhores enfiarem esta palavrinha aí: Amor.
Bis para o silêncio.
- É o que achas?
- Sim, diga-nos se é o que achas de verdade, homem.
- Olha bem, tira este vocábulo. Ficamos apenas com "Ordem e Progresso". Imponente, não, senhores?
Olhares.
- Talvez o amigo tenha alguma razão.
- Como, homem de Deus, ousa usurpar a integridade de nosso lema?
- Em nome do bom-gosto. Apenas isso.
- É uma mentira.
- O quê?
- Eu sei.
- Este negócio de "Ordem e Progresso" nunca vai pegar aqui. Por isso achava que "Amor" seria mais a nossa cara.
- Veja como falas, homem. Nunca ouvi tais palavras.
- Pois é, eu pensei o mesmo. Mas nossa missão não é inventar um país épico, grandioso, admirável?
- Sim.
- Sem dúvidas.
- Então, ao amor as batatas. De acordo?
Todos concordaram e mandaram bordar a bandeira daquele jeito mesmo, simples e megalomaníaca.

Aí aparece o Jards Macalé e ressuscita a pendenga da palavra esquecida. Francamente, ao amor, as batatas.
Sorry Everyboy, my ass!
Ficou famoso um site mantido por norte-americanos (que me perdoe o frei, mas "estadunidense" é palavrão) em que os bocós que não votaram em Bush pedem desculpas ao mundo pelos manés que votaram no dito cujo. Cada um, ou grupo, posta uma fotinha (sim, eu sei disso) sua segurando um papel escrito algo como "Sorry, world", "Sorry everybody", que é o nome e URL (http://www.sorryeverybody.com) do site. Alguns dos descontentes com a eleição perdida pelo "mocinho" Kerry pretendem até mesmo mudar de país: uma agência canadense com sede na cidade de Vancouver oferece um serviço para facilitar a imigração dos viúvos e viúvas dos democratas. Não que se espere uma migração em massa, claro. E muito menos para o Brasil, já que a única coisa que gringo consegue por estas bandas é ser assaltado em Copacabana.
É difícil aceitar, mas parece que há gente no mundo que acreditava piamente na vitória do cara-de-pastel-assado John Kerry como a salvação final. Parece-lhes que Kerry, uma vez na presidência, chamaria as tropas do Iraque de volta, mandaria os soldados que permanecem na Europa, África, América Latina, Japão, Coréia do Sul e Chupinzinho enfiar os fuzis na mochila e pegar o primeiro avião de volta a terra de paz e harmonia no qual se transformariam os EUA sob seu comando. Democratas e Republicanos representam apenas duas faces da arrogância de qualquer governante; os primeiros parecem bonzinhos, mas têm certeza de que o futuro será glorioso debaixo de suas mãos; já os segundos não se importam com propaganda enganosa e arrombam logo a porta da frente, avisando que quem manda no pardieiro são eles. Pelo jeito, o norte-americano prefere a sinceridade, mesmo que doa – bem diferente de um povinho aqui no sul.
Enfim, os caras escolheram o que quiseram e esta é a vantagem da democracia: dar ao povo o poder de conduzir sua história pelo voto (atenção Homem-Chavão!), o que inclui errar terrivelmente – fato que incomoda sobretudo a estes intelectuais que acreditam ter encontrado a solução dos problemas do mundo numa bandeirinha vermelha e num tacape travestido de mão carinhosa.
Pois eu digo: Sorry everybody, my ass! Vocês aí do norte são a grande referência democrática, goste-se disto ou não; portanto, não me venham pedir desculpas. Se acertaram ou fizeram uma burrada, daqui a alguns anos a gente conversa.

Adendo mal-educado: Sou louco para que os EUA assumam logo que são um império. Falo sério. Chega de nhemnhemnhem, povinho da Casa Branca, sorriam, encham os pulmões e digam logo o que todo mundo já sabe. Pelo menos, haveria uma fenomenal vantagem para nós, botocudos do andar de baixo: toda vez que um sujeito do porte de um Emir Sader ou um Leandro Konder escrever "império", "imperialismo" e outras boças, não terá mais aquela pose, aquela autoridade de guardião da verdade oculta. Já seria um baita alívio.
Chega!
Depois de um longo e penoso balanço, muitas decisões complexas, importantes e naturalmente sem sentido devem ser tomadas – e algum pescoço tem de ser oferecido em sacrifício no caso de a vaca dar com as quatro patas no fundo do pântano, claro.
Então, O Anacrônico muda de vez. Agora a coisa é séria. Pelo menos até a próxima decisão importante, inadiável e ridícula.