7 de abril de 2006

Não vi e não gostei

A verdade é que muitas das coisas que não gostamos jamais chegamos a experimentar; para dizer bem a verdade mesmo, nem precisaríamos. Ninguém deveria ser obrigado a comer chuchu; só de olhar para aquela pêra deformada, peluda e verde, qualquer cidadão de mínimo bom senso conclui que boa coisa nao sai dali. Este é o meu problema com o filme V de Vingança, baseado na HQ de 1984 de Alan Moore.
Os elogios concentram-se na "atualização" da trama da HQ, o que significa, basicamente, criticar George W. Bush. Senhores, convenhamos: criticar Bush Jr. é carne de vaca, qualquer um faz isso hoje em dia e há até quem viva exclusivamente disto.
Quando se diz que um filme "hollywoodiano" é corajoso ao apontar o dedinho acusador contra Washington, esquecem-se de duas coisas: Hollywood é maciçamente pró-democrata (republicanos como Arnold Schwarzenegger e o diretor John Millius, que não consegue emplacar um projetinho sequer, são exceção) e sua condescendência com o poder é tática, é uma relação sem a qual a indústria do cinemão norte-americano não sobreviveria. Há tantos filmes "patriotas" com os democratas no governo quanto durante a gestão republicana, mas há poucas produções criticando os primeiros (Segredos do Poder, com John "Clinton" Travolta, é uma delas, tímida demais), enquanto as que metem a mão na cara dos Bushs da vida ganham prêmios e notoriedade. Recentemente, entre os mais divulgados, tivemos Sob o Domínio do Mal, Syriana, Fahrenheit 9/11, Boa Noite e Boa Sorte e agora este V de Vingança.
Minha birra com a produção dos irmãos Wachowski (que levaram os fãs da FC ao paraíso com Matrix e ao inferno com Matrix:Revolutions) está na perda de foco da adaptação. V de Vingança, a HQ, é um libelo anarquista, sem meias palavras nem concessões (ainda que eu tenha aversão a arte "engajada", meu amigo, a HQ é uma obra-prima). É uma abordagem ideológica inteligente, que não evita a discussão sobre as ações de V (o personagem), ao mesmo tempo em que dispensa a "espetacularização" da ação e exibe a (Deus, me perdoe por usar esta palavra) "alienação" do povo inglês, mesmo enquanto V coloca em ação seu plano para derrubar o governo britânico (aquela cena da distrubuição das máscaras no trailer do filme me deu arrepios de tão estúpida). Eu vejo o final da minissérie com uma certa desesperança. Parece haver mais caos nas ruas do que a possibilidade da construção da sociedade anarquista desejada por V - não é à toa que Evey permanece para continuar o seu trabalho.
Reescrever a pregação anarquista de Moore para acomodar a ladainha anti-Bush que já nos acostumamos a ver não é coragem alguma; é obviedade. Moore estava preocupado com Margaret Thatcher e escreveu V de Vingança, a HQ, os irmãos Wachowski, preocupados com Bush, produziram V de Vingança, o filme.
Curiosamente, não é Thatcher quem é citada por V como exemplo de ditador que nós sempre colocamos no poder, mas sim Stálin, Hitler e cia. Alguns dos mais odiados governantes atuais teriam que comer muito arroz e muito feijão para chegar aos pés dos ditadores do passado. Provavelmente (e felizmente) não conseguirão, mesmo se quiserem.

Nenhum comentário: