18 de setembro de 2004

O intelectual escriturário
Depois que você consegue se livrar dos clichês sociológicos tão comuns nesta terra, consegue enxergar, de longe, a maior das esquisitices que eles ignoram totalmente num puro e simples auto-engano.
Não há como negar o fascínio dos que sabem construir um elaborado discurso de oposição "a tudo que aí está" – seja lá o que isso for. É uma tentação incrivelmente perigosa a de associar "inteligência" apenas com "esquerda". Isto acaba por fechar aqueles que não resistem a este "pensamento único" num círculo de auto referências e bajulações do qual ele só sairá com muito trabalho intelectual e uma boa dose de bom senso e honestidade intelectual. Há inteligências notáveis em todos os lados, sem dúvida, e ler e ouvir a ambos é obrigação de qualquer um que deseja entender um pouco mais do mundo. A escolha política de um dos "lados", anterior a uma investigação intelectual das suas teorias e discursos é responsável pelos maiores desastres humanos do século XX – de Hitler a Stálin.
Dito isso, voltemos ao que eu deveria estar mesmo discutindo. Qa Jin, autor chinês do belo A Espera, afirma, em seu segundo livro publicado no Brasil, que, após a Revolução Cultural da Mao e sua trupe, todos os intelectuais do país (e, por extensão, do partido) são meros escriturários. Esta reflexão, simples demais, óbvia demais para não ser notada, contrasta com o som e a fúria com que alguns intelectuais (incluindo um grupo bem grande de meros militantes alçados a condição de intelectuais orgânicos, com toda a flexibilidade que o termo garante) defendem seus tão altos ideais. Pois é esta capacidade de se engajar em seus projetos de "mundo melhor" que os alimenta e a seus admiradores. Uma vez alcançados seus objetivos, o que farão estes sujeitos bravos e, não raro, arrogantes? Serão apenas os escriturários do partido, uma tropa de diligentes fiéis e imbecilizados por vontade própria. Quem duvida, que vá prestar atenção ao comissário (uma forma especial de escriturário de alta patente da antiga União Soviética) Valinov, personagem do excelente filme Círculo de Fogo, e seu destino quando percebe a inutilidade de sua trajetória. Infelizmente, a maioria não tem o mesmo lampejo.
Que alguém almeje a ser escriturário, já é algo que não consigo entender. Quando toda uma geração (na verdade, mais de uma) de intelectuais sonha em ser escriturária de um Estado ainda embrionário, o que temos é um desastre – pessoas inteligentes trabalhando noite e dia para ser quase nada num futuro utópico.

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