12 de janeiro de 2004

Um post longo, pessoal e confuso emendado com São Paulo

Minha família abandonou o interior de Minas Gerais uma geração atrás e provavelmente somos os únicos belo-horizontinos que não sentem saudades da vida interiorana. A cidade desde cedo me fascinou (certo, eu tive minha fase de biólogo mirim e sempre gostei de montanhas, floresta e mar, não tanto de praia) – acabei adotando-a definitivamente. Não era para menos, aos sete anos demos o passo definitivo rumo a nossa urbanização familiar: compramos um apartamento num bairro distante e promissor. Por sorte, estávamos certos; o bairro cresceu e agora enfrenta os conflitos de todo centro jovem. Lembro minha infância da janela do quarto que eu adorava olhar; a gente ainda vê hoje boa parte da cidade. Imaginar quem morava lá no alto dos morros, ver os carros passando pela rodovia entre árvores aparentemente gigantescas – nem sei quantas horas passei exercitando uma imaginação que se alimentava ironicamente da realidade visível aos olhos. E que realidade. Antes que uma grande fábrica no distrito industrial fosse finalmente fechada, a poluição marcava os olhos dos prédios com lágrimas de fuligem. Mesmo hoje ainda desenho cidades imensas e poluídas. Tolkien sofrera muito quando foi obrigado a se mudar, ainda menino, dos campos da África do Sul para a Inglaterra industrializada. Eu não sofri, a cidade me adotou.
Oliver Sacks (se não me engano) já disse que há um grande desprezo pela excitação da vida urbana. É verdade. Veja o Rio de Janeiro de Machado de Assis, a Dublin de Joyce, a Nova Iorque de Woody Allen, a São Paulo de Oswald e Mário – há um misto de perigo e fascínio nestes mundos urbanos, cruéis como um vilão de Dickens, irremediavelmente sedutoras, charmosas como Greta Garbo. Opressoras e belas, as cidades se espalham vorazes, devorando espaços sem pedir licença e sem educação alguma, uma tragédia anunciada e encenada milhares de vezes. Vivemos numa sociedade urbana e o caminho inescapável de todo país que se desenvolve é este.
Não há nostalgia do campo que resista a sua realidade. Nostálgicos rurais são idealistas, imaginam construir uma casa numa chácara e viver de vácuo e ócio. Bobagem. Campo é sinônimo de trabalho, duro, tão cruel quanto o urbano – homem, mulher e criança, quatorze horas por dia, contra o tempo, a terra, os bancos e o governo. Alguns ainda acreditam ser possível um retorno do homem a sua origem agrária, a sua suposta “relação harmônica com o ambiente” (meio ambiente é pleonasmo, sabemos disto). Posso estar errado. Seja como for, a escolha do meu destino “urbanóide paranóico”, nas sábias palavras de um colega, já foi feita. Duro, para este nada idealista que você lê, é viver longe das livrarias onde se conversa de graça com um estranho porque nos interessamos pela mesma prateleira. É não ter cinema (tragédia sem igual o fim das salas de exibição) para assistir a um filme-bobagem hollywoodiano ou um delicioso pastel de vento metido a intelectual. É ter como lazer apenas o bar e a praça da igreja. É estar longe do hospital, do transporte, da farmácia - embora se pague muito caro por eles. Lamento a balbúrdia, o trânsito, a violência crescente, mas pago o preço por minha escolha. Um mundo de responsabilidades e escolha. Ora, que o ócio eterno vá para o inferno – prefiro uma vida excitante e perigosa a promessa de um descanso sem razão e origem.
Então, chegamos a São Paulo. Conheço pouco dela; a av.Paulista; o Colégio Marista apinhado de adolescentes numa convenção de cultura japonesa; a garoa-personagem insistente; o jardim da Pinacoteca, caminhando com uma amiga muito querida; o museu de arte; o medo do assalto, as histórias das vítimas; o avião descendo em Congonhas como se fosse desabar sobre as ruas e os prédios; o terminal rodoviário quase insano em tantos movimentos; os fonemas de todo o mundo e brasileiros de todos os brasis – mineiros, baianos, amazonenses, cariocas, até mesmo paulistas!
Porém, não sei se viveria em São Paulo. Talvez ela extrapole minhas pretensões urbanas com sua opulência de erros e acertos. Mas não nego minha atração por ela, embora eu não a ame como a minha cidade. É que somos apenas bons amigos e, na verdade, nos vemos raramente. Tenho carinho por ela e, notem que isto não é pouco. É fácil demais odiá-la, e não raro seus habitantes agem como os parisienses, que estão sempre a reclamar da torre, do arco, do pãozinho e da má educação que lhes atribuem. Mas orgulham-se de suas contradições até como uma certa alegria.
Então é isto, São Paulo. Aprendemos a amar suas contradições - que, no final das contas, são as nossas.

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