21 de agosto de 2003

De novo, a estupidez
A manhã de quarta trazia a notícia da morte de Viera de Mello, vítima de atentado de grandes proporções ao prédio da ONU, em Bagdá. Enfim, o que pensar deste acontecimento?
Condenar o terrorismo é fácil e moralmente correto. Seria absurdo justificar o que aconteceu acusando a ocupação norte-americana do Iraque. O fato é que são eventos obviamente coligados e o alvo da fúria rebelde (o prédio da ONU) nos fala mais do que aparenta.
A Guerra do Iraque não é uma repetição da Guerra do Golfo; se na primeira, havia a desculpa (ou justificativa) para uma aliança de países contra o regime de Saddam liderada por Bush-pai, esta última é um conflito norte-americano, de mais ninguém. A galera de Donald Rumsfeld suou a gravata tentando convencer outros países a enviarem tropas - sem hesitar, apenas, se eu não estiver enganado, Inglaterra, Espanha e Austrália atenderam ao "chamado". A impressão que fica é que, mesmo sabendo das atrocidades cometidas pelo regime de Hussein, ninguém seria capaz de prová-las; a novela das tais armas de destruição em massa (que certamente o Iraque possui) servia para dar ares de "missão humanitária" a uma guerra como qualquer outra. Agora, o tal discurso se esvaziou diantes dos horrores de uma ocupação e das trapalhadas inglesas do pós-guerra.
A ocupação é uma época de tensões; não há ocupação pacífica. É como se o tempo da guerra estivesse se alongando por culpa exclusiva dos vencedores. Mas a questão no Oriente é outra - a guerra não terminou; e aparentemente os conservadores da Casa Branca querem nos convencer de que isto não é verdade. Muita gente avisou que o desfecho deste conflito não seria diferente, e que a ONU perderia seu papel. Aí está. O alvo do terrorismo não foi a embaixada dos EUA, mas o prédio da ONU. Tivessem os EUA saído de cena e deixado a gerência do caos iraquiano a cargo da ONU talvez (e bota talvez nisso), as coisas teriam sido um pouco distintas - ou não, diria Caetano Veloso. Não se está aqui, a afirmar que a ONU encarna o bem e os EUA o mal; se eu dissesse ou pensasse uma coisa destas, mereceria um chapéu daqueles bem pontudos enfiado no cocoruto onde se lê o nome do animal em geral associado a baixa capacidade intelectual. O que se deseja é que cada um cumpra o seu papel e saiba sair de cena na sua deixa; afinal, a esta altura do campeonato, a lambança já havia sido feita mesmo. Por outro lado, por que a ONU assumiria a responsabilidade de gerir o Iraque uma vez que o problema todo fora criado pelos EUA? Talvez porque seja esta a missão que lhe cabe, uma vez que a ocupação norte-americana não tem (nem terá) competência para a pacificação, ao contrário das ambições dos conservadores. Como se diz por aqui: sobrou para ela.
E o que trouxe esta guerra para o iraquiano comum, que temia o seu ditador local, mas que também não queria tanques estrangeiros vigiando suas ruas? Liberdade é o que não foi (ainda). O pobre coitado saiu de um inferno sufocado e passou para um possível ciclo de violências não mais tuteladas pelo Estado, mas executadas por outros sujeitos como ele. A guerra trouxe aquilo que todas trazem em seu rastro: destruição, fome, miséria e aumento do poder do Estado (no caso, do Estado norte-americano). Algumas vezes, vista de longe, a História mostra que, com o tempo, a balança que equilibra os ganhos e as perdas vai pendendo para o lado da primeira. O exemplo clássico da Segunda Guerra é óbvio demais para não ser citado - ruim com Hitler, mil vezes melhor sem ele. Isto acontecerá com esta guerra do Iraque? Ninguém sabe responder isto, a não ser o patético otimismo de gente como Donald Rumsfeld. Será possível que eles realmente acreditam que conseguirão transformar o Iraque num porto seguro para sua política, como no passado, foi feito na Coréia do Sul, por exemplo? (*) Provavelmente, acreditam.
Quebrarão a cara. O Oriente Médio é mais complicado do que julgam estes senhores do rolo compressor bélico. Veja a questão de Israel que não me deixa mentir. O futuro do Iraque pode estar ali. Vale a pena olhar a questão dos palestinos e judeus em Israel para ficar aterrorizado com o tipo de país que surgirá do Iraque atual, que não pertence a ninguém.
Se estou feliz com a deposição de um porco como Saddam Hussein? Sem dúvida. Mas não posso deixar de me preocupar com o que será feito com sua vaga e com o pouco que sobra do Iraque.
A guerra ainda está em curso.

(*) Antes que alguém venha me xingar, saiba que você está certo. O exemplo da Coréia do Sul serve apenas para citar um país que acabou "americanizado" após o fim de um conflito envolvendo os EUA e, naquele tempo, URSS e China. É óbvio que a Coréia do Sul é hoje um país de fato, ao contrário de sua irmã do norte, um reduto de atraso, fome, miséria e arrogência insolúveis a não ser com o fim do regime atual - e, espera-se, que não sejam os EUA a tentar isto. Por outro lado, os sul-coreanos e japoneses não estão errados quando se perguntam se a presença norte-americana ainda se justifica nestes dois países.

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