16 de agosto de 2003

As massas dos EUA e a energia
Enquanto alguns ficam felizes porque a "grande nação do Norte" sofre com uma rede elétrica de Quinto Mundo que teria causado o aterrador blecaute da semana passada, este texto da revista Primeira Leitura resume, de forma admirável, a dimensão da tragédia. Ela não é técnica, ela é a derrocada do indivíduo diante de um mundo e um Estado incompreensíveis.

Falências

Triste e difícil para o homem comum, aquele de vida banal, os Bills, Ellens, Jacks, Annes, viver num mundo que não compreendem

Num mundo sem Osama Bin Laden e George W. Bush, uma ocorrência como a desta quinta-feira entupiria o noticiário destinado aos “causos” do cotidiano. Afinal, Nova York, a metrópole do mundo ocidental, parada por um apagão, os congestionamentos, milhares de pessoas em busca de transporte. Poderia mesmo ser motivo de um daqueles filmes B da vastíssima produção de filmes bês do cinema americano: tudo parado, eis uma chance para que Bill repense seu relacionamento com Mary Ellen, sua desatenção às crianças... Seria a chance perfeita para Anne ligar para Jack e encostá-lo contra a parede: já não suporta mais ser sua amante, a outra. Apostou tudo naquela relação: carreira, futuro, emoções. Um apagão desses seria, assim, um evento fora da curva a disparar uma seqüência de emoções banais reprimidas. A banalidade e o inútil da vida de cada um.

Mas não! Em vez disso, a ocorrência foi parar no noticiário de política. As agências do mundo deslocaram seus repórteres; TVs mundo afora ficaram em transmissão contínua. A suspeita, obviamente, era a de mais um atentado terrorista. Triste e difícil para o homem comum, aquele de vida banal, os Bills, Ellens, Jacks, Annes, viver num mundo que não compreendem, que parece mesmo muito acima de sua inteligência, mas que os colhe. Em vez de o apagão remeter àquela idiota psicologização da vida — mas que era ainda retrato de mundo seguro —, remete, em verdade, para o pânico, para a iminência da tragédia. As tais ocorrências fortuitas de antes pareciam ter o condão de levar cada homem para dentro de si mesmo; os de hoje, expropriam os cidadãos de sua alma e os fazem apenas peças de um coletivo insosso, desesperado, tentando traduzir a intraduzível lógica da política.

É a tradução, pelos fatos, da suspeita, quase teológica, de que o terrorismo havia ganhado a batalha pela alma dos americanos. Estão condenados a nunca mais ser banais, estão condenados a nunca mais ser indivíduos (isso na terra de Marlboro); estão condenados a nunca mais ser introspectivos. São massa mesmo. Massa de manobra do terror e da política de Estado.

Fonte: Falências, texto da Primeira Leitura.

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